Em maio deste ano, o governo brasileiro editou o decreto nº 11.075, que propõe a elaboração de planos setoriais de mitigação das mudanças climáticas. Trata-se de uma primeira medida que busca nacionalizar os compromissos assumidos pelo Brasil na Conferência das Partes do ano passado (COP-26), quando o país se comprometeu a reduzir 50% das emissões de gases de efeito estufa até 2030, tendo como base o ano de 2005. A meta anterior era de 43%, portanto houve um aumento da promessa em relação à redução de emissões. Além disso, a COP-26 também teve como novidade a aprovação de itens do artigo 6º do Acordo de Paris – que indicam a criação de um mercado global para créditos de carbono. Com este consenso, será possível regulamentar e coordenar entre os países as bases para a criação deste mercado.
Conversamos com o Chief Scientific Officer da BlockC, Ricardo Esparta, que comentou um pouco sobre essas duas mudanças e seus efeitos para as empresas no Brasil. Leia o papo abaixo:
Como estão as negociações em relação ao artigo 6º do Acordo de Paris após sua conclusão na COP 26?
A negociação que acontece entre os países não é pública, ficamos sabendo por intermediários. Existem muitas dificuldades para se avançar. Os acordos que foram feitos, enquanto se mantêm numa fase de retórica, são todos utilizados por todos – mas o que é efetivado com relação a eles é muito pouco. O que se pode adiantar especificamente em relação ao artigo 6.4, que trata da criação de um mecanismo de mercado que vai praticamente substituir o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, é que já está sendo preparada a regulamentação dele. Ela é feita por um corpo técnico-político, o Supervisory Body. E esse grupo se reuniu pela primeira vez agora em julho. A regulamentação começou a ser preparada, mas ainda vai demorar um pouquinho para a gente ter alguma coisa. Serão três reuniões. Resumindo: as coisas estão andando do ponto de vista de regulamentação, mas no ponto de vista de implementação do que foi prometido a única boa notícia é que os Estados Unidos acabaram de aprovar um pacote grande. Mas, pensando em Brasil, aprovamos só alguns decretos. Programas, mesmo, ainda estamos precisando.
Como o Decreto nº 11.075, de maio de 2022, impacta nesta regulação no Brasil?
O decreto define muito pouco. Ele chama setores – por exemplo, geração de energia, o setor de transporte, etc – e fala em “planos setoriais”. Então esses grupos estão convidados a fazerem propostas desses “planos setoriais” – têm 180 dias para fazer isso ao contar do decreto de maio, que podem ser prorrogados por mais 180 dias. Mas quem representa o setor de energia? Eu represento? Vou lá e faço uma proposta? Formação de legislação é uma coisa muito complexa. Infelizmente tem que vir na regulamentação a especificação de como é que nós vamos reconhecer os grupos como representantes de setores. Se são associações, por exemplo, isso precisa estar regulamentado. Se eles não falam como é isso, ninguém representa.
Outra coisa: o decreto fala do “mercado brasileiro de redução de emissões”. O que é isso? Como isso vai funcionar? Fala também do “Sistema Nacional de Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa” (SINARE). É legal toda a indicação de que as empresas vão ter que publicar inventários, mas como isso vai funcionar? A minha conclusão final é de que ele é fraco. É indicativo – melhor que nada, mas infelizmente ele está muito próximo do nada. Porque ele só fala um “vamos aí, pessoal, vamos fazer, tá?” – mas quem vai fazer, como vai fazer, quando vai fazer?
Como o Brasil tem feito para entrar na discussão? Sabe como tem sido as discussões do grupo de trabalho criado pela Casa Civil?
Ninguém sabe o que aconteceu e o que deixou de acontecer. Existe um grupo de WhatsApp que congrega as lideranças do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, grupo criado no início dos anos 2000 que teria o papel de ser a interface entre a sociedade civil e o governo para discussão da mudança do clima. Você vê como uma coisa informal, né? Esse grupo se comunica por WhatsApp. Como disse: é melhor do que nada, mas muito próximo do nada. Eles fizeram duas ou três reuniões para discutir o que está sendo feito, como as coisas estão funcionando, já que o Brasil assumiu compromissos mais fortes na COP-26, no final do ano passado. Mas toda a discussão do decreto do governo de maio, por exemplo, não passou pelo grupo. Nós estamos num momento nacional que é um pouco isso – o governo se sentido empurrado a fazer alguma coisa, mas ele está meio sem jeito, porque não se preparou, não trabalhou esse tempo todo para realmente pegar a contribuição da sociedade. Mas vamos para a parte positiva das coisas: eles passaram a conversar com a gente. Eles passaram a fazer decreto. É um movimento na direção correta. Falta agora isso ser feito de uma maneira mais institucional. Esperamos que esse movimento seja só o primeiro de vários outros que acontecerão.
Há alguma previsão para a criação de um mercado de créditos de carbono para empresas no Brasil?
Não. Nós estamos vindo de um cenário em que o Brasil não tinha compromissos de redução de emissão. Se eu fosse uma empresa e fizesse um projeto de redução de emissão, eu teria potencial de registrar, gerar e vender esses créditos. O Brasil a partir de 2021, da última Conferência das Partes, tem compromissos. Então agora já não funciona mais assim: eu como empresa posso fazer um projeto, mas talvez ele precise superar as metas com as quais o Brasil se comprometeu. Vamos imaginar que de um dia para outro dia o governo fale assim: setor de energia, vocês têm que reduzir as emissões de vocês em 20% até 2030, ok? Esses 20% automaticamente passam a ser obrigatórios – então se você tem um projeto que vai reduzir 20% das suas emissões, parabéns, você acabou de cumprir a lei. Nós assumimos compromissos internacionais. Isso tem de ser tratado.
O Brasil se comprometeu a reduzir 50% das suas emissões até 2030, tendo como ano base 2005. Estamos longe disso. Teremos algum mercado compulsório, existirá alguma coisa que será obrigatória. E a partir do momento que ele existir, será o mínimo que a gente tem que fazer. A gente só ganhará crédito se nós fizermos algo acima disso. É isso que as pessoas não estão entendendo. Essa é a complexidade da regulamentação do artigo 6.4. O mercado tem potencial de ser bom no Brasil, mas ainda estamos pensando com a cabeça de “não temos compromisso”. Quando o Brasil faz esses compromissos internacionais, ele precisa trazer isso para o país, transformar isso em lei. O decreto de maio é o caminho para tentar entrar em conformidade com aquilo que prometemos no Acordo de Paris. E pode acontecer, nesse período, de o país entender que não vai conseguir cumprir.
Qual seria a sua recomendação para empresas que precisam se posicionar hoje em relação à criação deste mercado de créditos de carbono?
Faça o seu inventário. Saiba muito bem onde você está. Lembre-se de que você vai ser cobrado a partir de primeiro de janeiro de 2021. Essa é a data de validade do acordo de Paris. Tem um detalhe nesse acordo: o Brasil se comprometeu a reduzir 37% das emissões até 2025 e 50% até 2030. E você não é obrigado a mostrar um percurso para ir até lá. Você tem que estar no ano de 2025 com 37% menos, e no ano de 2050 com 50% a menos em relação a 2005. Também diria para a empresa para que ela tente ver que tipo de compromissos conseguiria fazer. O que é viável: uma redução de 10% nas emissões? E 20%, ameaçaria o seu negócio? E 30%? Faça esse exercício, porque a probabilidade de isso vir a acontecer num futuro não muito distante não é pequena. Esteja preparado, porque vem.
Eu sempre fico com essa dor: se tem um país em que as emissões podem ser baixas, que tem uma matriz energética um pouco mais limpa do que a média, se tem alguém que poderia ganhar com isso seria o Brasil. Poderíamos produzir coisas com menos emissões. A gente tem esses nichos para atuar com vantagem competitiva e comparativa. Mas não estamos fazendo isso.